Dizem tratar-se de um feito histórico. Conservacionistas argentinos da organização Aves Argentinas anunciaram ter libertado no seu habitat natural juvenis de mergulhão-de-capuz (Podiceps gallardoi), criados em cativeiro. Esta é uma ave Criticamente Em Perigo de extinção.
Os protagonistas deste acontecimento são três juvenis de mergulhão-de-capuz (Podiceps gallardoi), uma espécie emblemática da Patagónia. Estas três aves nasceram na Estação Biológica “Juan Mazar Barnett”, onde trabalha o Programa Patagonia da organização Aves Argentinas.
Estes juvenis foram libertados no estuário do rio Santa Cruz, um sítio considerado crucial para a conservação desta espécie.
“Num contexto em que a reprodução natural tem sido praticamente nula nos últimos anos, esta ação pioneira marca um ponto de inflexão: se for replica a uma escala maior poderá significar a diferença entre a extinção ou a sobrevivência da espécie”, escreveu a organização Aves Argentinas em comunicado divulgado a 4 de Maio.
Segundo os conservacionistas desta organização, criada há mais de 100 anos para proteger as aves selvagens e a natureza da Argentina, “o sucesso de hoje é fruto de mais de 10 anos de trabalho constante e colaborativo, que não teria sido possível sem o esforço e a paixão da equipa técnica e científica do projecto”.
O mergulhão-de-capuz foi descrito para a Ciência recentemente, em 1974, depois de o naturalista argentino Mauricio Rumboll ter encontrado esta ave na Laguna de Los Escarchados, perto de El Calafate, na província de Santa Cruz.
Esta é uma espécie endémica da Patagónia Austral e nidificante endémico da Argentina. Desde que foi descrito, o mergulhão-de-capuz tornou-se num símbolo da natureza selvagem e da conservação na Patagónia. Vive em lagos e lagoas das mesetas de altura da província de Santa Cruz. No inverno migra até à costa atlântica, para os estuários dos rios Coyle, Gallegos e Chico-Santa Cruz.
Desde que foi descrito em 1974, “a sua história tem sido um vaivém de esperanças e alertas”, escreveu a organização, membro da rede Birdlife International (da qual também faz parte a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, SPEA), em comunicado enviado à Wilder.
Inicialmente, os conservacionistas temiam que esta ave estava em grave risco de desaparecer, uma vez que só se conheciam 150 indivíduos.
Mas, na década de 1990, a informação recolhida pela Fundación Vida Silvestre (FVSA) levou a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) a declarar que “o seu inóspito e remoto habitat vai garantir a sua proteção”.
Contudo, não foi assim porque as ameaças humanas chegaram também a essas zonas. O avanço das espécies exóticas invasoras (como o visão-americano ou a truta arco-íris) e as alterações climáticas provocou um retrocesso populacional alarmante.
Hoje, o mergulhão-de-capuz atravessa um processo que o poderá levar à extinção durante esta década. A população diminuiu 80% nos últimos 25 anos e estima-se que restem menos de 800 indivíduos.
Em 2012, fruto de um grande esforço de investigação que levou os peritos a locais remotos da Patagónia, a UICN reavaliou o estado de conservação do mergulhão-de-capuz, elevando-o para Criticamente Em Perigo, a categoria mais elevada antes da extinção de uma espécie.
“As pequenas populações que restam reproduzem-se em pouquíssimas lagoas de altitude nas mesetas do Oeste de Santa Cruz e migram no inverno para os estuários de grandes rios, principalmente para o rio Santa Cruz”.
Desde 2010, o Programa Patagonia da Aves Argentinas trabalha para reverter esta situação, em colaboração com organismos regionais e nacionais, organizações não governamentais, universidades e instituições internacionais.
Os conservacionistas fizeram a monitorização das colónias reprodutoras e aplicaram medidas para mitigar o impacto das alterações climáticas para tentar estabilizar as populações. Mas, perante a persistência da degradação ambiental, surgiu a necessidade de encontrar estratégias mais inovadoras.
Uma aposta audaz: criar para libertar
Há mais de uma década, uma equipa liderada pela médica veterinária Gabriela Gabarain começou a desenvolver uma estratégia que ainda não tinha sido tentada: criar mergulhões-de-capuz em condições controladas, desde o ovo até à sua reintrodução.
Este processo tornou-se numa missão contra-relógio para evitar a extinção de uma espécie.
A metodologia assenta numa observação chave: 97% dos casais reprodutores apenas cria um dos ovos que põe, enquanto que o outro é abandonado (é o chamado “ovo de garantia”).
Aproveitando estes ovos que, de outra forma, se perderiam, uma equipa técnica recolhe os ovos e leva-os para a Estação Biológica. Ali, incubadoras especialmente desenhadas replicam as condições ideais de temperatura, humidade e rotação.
Uma vez nascidas, as crias requerem cuidados intensivos: alimentação constante, natação diária (necessária para activar a digestão) e atenção permanente durante semanas. O processo levou anos de tentativas e erros até conseguir ter sucesso.
“Os primeiros dias são os mais críticos: aceitar o alimento é uma barreira vital. Esta fragilidade inicial também se observa na natureza, o que confirma que o desafio não é apenas humano.”
Depois de mais de dois meses de cuidados ininterruptos, três juvenis conseguiram alcançar o peso ideal para serem libertados: mais de 350 gramas em fêmeas e 400 em machos.
A reintrodução na natureza realizou-se no estuário do rio Santa Cruz, nos locais de invernada e onde outros adultos já lá estavam. Esta estratégia evita a arriscada migração inicial desde as lagoas em zonas de maior altitude.
Os três juvenis foram marcados com anilhas vermelhas numeradas que vão permitir segui-los no futuro.
A Aves Argentinas acredita que “a reprodução em cativeiro pode mudar o destino da espécie”. Esta técnica, seguida de libertação controlada, poderá permitir a reintrodução anual de mais de 50 juvenis, o que fortalecerá significativamente a população selvagem.
“O caminho é desafiante mas, pela primeira vez em muito tempo, há uma esperança real e concreta de evitar a extinção do mergulhão-de-capuz”, escreve a organização Aves Argentinas.