Na série de entrevistas Investigadores pela Natureza, a Wilder fala com cientistas que se dedicam a tentar resolver alguns dos maiores desafios da biodiversidade e sustentabilidade em Portugal. Hoje, conheça Catarina Frazão Santos, investigadora do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
WILDER: Quem é a Catarina Frazão Santos como cientista?
Catarina Frazão Santos: Sempre tive muitas dúvidas sobre o que queria seguir, movendo-me entre as artes e as ciências. Acabei por seguir biologia, mas andei sempre muito na dúvida. A paixão pelo mar era uma paixão antiga, desde pequenina, como acontece com muitas pessoas que vivem perto da costa. Mas havia muitas incertezas sobre o que poderia fazer profissionalmente com essa paixão, ainda mais numa época em que era comum ouvir dizer que “biologia não dava emprego”. Ainda assim, achei que valia a pena arriscar. Era aquilo de que eu gostava. Entrei no curso de Biologia com a única certeza de que não me via a trabalhar focada numa única espécie ou num objeto de estudo muito restrito. Queria algo mais amplo.
Depois da licenciatura, entrei no mestrado em Ecologia e Gestão Ambiental. Foi aí que descobri o que era a gestão ambiental e desenvolvi um interesse particular por essa área. Na altura, realizei um trabalho sobre sensibilidade costeira a derrames de petróleo, que me permitiu explorar as ligações entre sensibilidade ambiental e questões sociais. Após o mestrado, integrei a equipa com quem tinha feito a tese, que fazia o acompanhamento ambiental dos projetos de Tróia. Foi uma experiência muito rica e interdisciplinar, que envolvia desde avaliações ambientais estratégicas até monitorização de ambientes intertidais.
Entretanto, começou-se a falar do ordenamento do espaço marinho a nível europeu, com o roteiro inicial da Comissão Europeia em 2008. Como o meu background era mais ligado à sensibilidade a derrames de petróleo e ao risco ambiental, a minha ideia inicial de doutoramento era cruzar essas duas áreas. Por coincidência, já depois de fazer a candidatura ao doutoramento, surgiu a oportunidade de frequentar um curso de verão na Universidade de Duke, nos Estados Unidos. Foi aí que tive o primeiro contacto com a área das políticas do mar e com o lado mais social da conservação. Quando regressei, percebi que queria mudar o foco do meu doutoramento. Decidi, então, centrá-lo no ordenamento do espaço marinho em Portugal, numa perspetiva de políticas do oceano e sustentabilidade ambiental.
Desde então, o meu trabalho tem-se focado em compreender como as alterações climáticas e as mudanças nos ecossistemas marinhos impactam a gestão e o planeamento do mar, numa abordagem integrada entre ciência ecológica e políticas públicas.
W: Quais os principais projetos que desenvolveu nesta área até hoje?
Catarina Frazão Santos: No Laboratório Marítimo da Guia, a maioria dos meus colegas trabalha em ecologia pura, com foco nas alterações climáticas. Já há algum tempo começámos a explorar de que forma essas alterações podem influenciar os usos do mar e, consequentemente, o seu planeamento. Foi a partir dessa reflexão que submetemos o nosso primeiro projeto sobre essa interligação, o que deu origem a outros trabalhos e, mais recentemente, ao projeto PLAnT, centrado na Antártida.
Após o doutoramento, comecei a investigar como as alterações climáticas se interligam com os processos de ordenamento do espaço marinho. Em 2016, publicámos um pequeno artigo sobre este tema na revista Nature Geoscience, defendendo a importância de olhar para esta interligação. Pouco depois, obtive financiamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) para coordenar o meu primeiro projeto, o OCEANPLAN, que procurava exatamente explorar estas interligações. Por um lado, queríamos perceber de que forma o planeamento do uso do mar poderia ser afetado pelas alterações climáticas, e por outro, como esse planeamento poderia contribuir para mitigar os efeitos negativos dessas mesmas alterações. Esse projeto foi muito importante e acabámos por publicar outra vez sobre o tema de uma forma mais extensiva numa outra revista muito boa, na Nature Sustainability, e tudo isso deu visibilidade a estas questões. Conseguimos divulgar amplamente a necessidade de integrar informação climática no planeamento do espaço marinho. Apesar de essa necessidade já estar reconhecida há algum tempo, na prática, os planos existentes continuavam a ter uma integração muito limitada de dados climáticos. E a verdade é que, obviamente não só por isso, mas também por isso, o tema acabou por vir a ter um reconhecimento grande a nível internacional. No final de 2022, a UNESCO e a Comissão Europeia reconheceram aquilo a que se chama o Ordenamento do Espaço Marinho Inteligente do ponto de vista climático como uma das seis prioridades para o desenvolvimento do ordenamento do espaço marinho a nível global para os anos seguintes. E isso foi muito bom, foi a sensação de que conseguimos transferir a ciência para a prática, para a gestão e para a política.
Conduzimos também um pequeno estudo sobre a perceção de especialistas polares (Ártico e Antártida) relativamente ao ordenamento de espaço marinho. Verificámos que havia muito desconhecimento e alguma confusão entre este conceito e o de áreas marinhas protegidas, que são coisas diferentes: as áreas protegidas visam a conservação, enquanto o ordenamento do espaço marinho é focado na utilização sustentável, com participação de todos os setores envolvidos. Foi também nesse contexto que percebemos que o Oceano Antártico era a única grande bacia oceânica que nunca tinha tido um processo formal de ordenamento do espaço marinho. No Ártico existem algumas iniciativas, mas na Antártida não havia nada nesse sentido. Foi então no âmbito deste projeto, também financiado pela FCT e intitulado MSPOLAR, que começámos a trabalhar mais diretamente com a Antártida.
A Antártida pareceu-nos o caso de estudo ideal para explorar o conceito de ordenamento do espaço marinho inteligente do ponto de vista climático. É uma região extremamente vulnerável às alterações climáticas, mas também única em termos de governança, por ser gerida sob um regime internacional. Foi esse trabalho que acabou por ser financiado no ano passado com o projeto PLAnT, que é um projeto financiado pelo European Research Council. Trata-se de um projeto de grande escala, cujo objetivo é explorar os benefícios e oportunidades de aplicar este tipo de ordenamento à região do Oceano Antártico e as suas limitações e desafios. O nosso objetivo é que este projeto possa inspirar e influenciar outras nações que desenvolvem ordenamento do espaço marinho, mas que ainda não integram de forma efetiva a componente climática.
W: Qual é que é a importância da interdisciplinaridade entre a gestão ambiental e a ecologia pura?
Catarina Frazão Santos: Não daria para fazer de outra forma. Neste tipo de temas, não é possível dissociar as duas áreas. Aliás, na verdade não existe uma diferenciação. Pensamos muitas vezes no ambiente de um lado e os seres humanos do outro, mas isso não existe. É um contínuo e nós como seres humanos fazemos parte do ecossistema. Portanto, se queremos ter uma visão verdadeiramente integrada sobre os sistemas que estamos a gerir, não podemos dissociar as dimensões ecológicas das sociais, económicas, políticas e culturais. Cada vez mais se reconhece essa necessidade de integrar estes diferentes tipos de conhecimento para se conseguir ter sustentabilidade no longo prazo. Lembro-me de uma ideia que me marcou durante o curso de verão na Universidade de Duke. Um professor disse: “It’s all about people.” E é mesmo isso. Quando fazemos gestão ambiental, na verdade não estamos a gerir o ecossistema, estamos a gerir comportamentos humanos sobre esse ecossistema. Portanto, o que fazemos é mudar a forma como nós, seres humanos, nos relacionamos com esse ambiente.
W: Que progressos e desafios identifica no que toca à literacia do oceano?
Catarina Frazão Santos: Acho que já existe muita literacia e é uma área que tem vindo a ganhar muita atenção nos últimos anos, mas acho que ainda há muito para fazer. Muitas vezes quando pensamos em literacia, pensamos na população em geral. Mas essa literacia tem de chegar também aos tomadores de decisão, às indústrias, aos vários setores envolvidos no uso e na gestão do espaço marinho. Não basta informar o público, é fundamental que quem decide, quem gere e quem atua nestes processos compreenda verdadeiramente a importância do que está em causa. Um exemplo claro tem a ver com a noção de equilíbrio entre conservação e desenvolvimento. Fala-se muito na ideia de que, para garantir desenvolvimento socioeconómico a longo prazo, temos de proteger o oceano. E é exatamente isso. Conservar ecossistemas e proteger determinadas áreas não é apenas uma escolha ecológica, é uma necessidade prática e utilitária. Se não o fizermos agora, não teremos atividade no futuro. Mas eu acho que falta muito a tomadores de decisão, a gestores, aos sectores, às indústrias, este reconhecimento real de que isto não é só um interesse de quem trabalha com a parte mais ecológica, que é mesmo uma necessidade.
W: Que conselhos daria aos jovens investigadores em início de carreira?
Catarina Frazão Santos: Em primeiro lugar, diria para não serem pessimistas, que às vezes não é fácil, mas que é importante. Às vezes sinto isso com os meus alunos de mestrado. Em vez de lembrarmos todas as dificuldades, devemos querer passar a mensagem de que há estas dificuldades todas, mas que temos de encontrar soluções. Mas às vezes é difícil, e para mim também às vezes, não ficarmos pessimistas, porque estamos todos há décadas a tentar resolver os problemas e não estamos a conseguir. É fácil pensar que não há nada a fazer, que não vale a pena. Mas é preciso sermos otimistas e continuarmos a procurar soluções. Para quem está a começar eu diria que o mais importante é seguir os seus sonhos. Sei que isto parece um chavão, mas é mesmo importante. Muitas vezes, nem sequer corremos o risco de tentar porque achamos que não vale a pena, que não somos bons o suficiente, que não vamos conseguir. Ou seja, somos os nossos maiores críticos. Por exemplo, muitas vezes nem sequer tentamos submeter artigos às revistas melhores porque achamos que não vale a pena. Não tentamos submeter uma proposta de projeto porque achamos que não é boa o suficiente. Mas se não tentarmos, não vamos conseguir de certeza. E é importante sabermos lidar com os fracassos, porque por detrás de um currículo de sucesso, há uma lista de artigos não aceites e de projetos não financiados. É importante saber lidar com o fracasso sem desistir. Não é fácil, é uma aprendizagem, mas acho que se desde o início tivermos essa noção e tivermos bons mentores que nos apoiem, faz muita diferença.