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abutre-preto em voo
Abutre-preto. Foto: Artemy Voikhansky/Wiki Commons

Casos suspeitos de envenenamento em Portugal mataram 61 animais selvagens desde 2021

17.10.2024

Projeto dedicado à conservação do abutre-preto analisou dados oficiais e lamenta impunidade “quase total” dos criminosos, apesar das consequências para a biodiversidade e a saúde pública. Agentes da GNR/SEPNA vão ter mais três cães treinados para deteção de venenos.

De acordo com os dados da GNR/SEPNA analisados pelo LIFE Aegypius Return, no âmbito das ações deste projeto co-financiado por fundos europeus, o milhafre-real tem sido de longe a espécie selvagem mais atingida pelos casos em que houve suspeita de envenenamento: um total de 21 aves da espécie foram encontradas mortas no período analisado, entre o início de 2021 e junho passado.

“O uso de venenos para matar animais selvagens ou domésticos, apesar de constutuir um crime punível com pena de prisão, continua a ser uma prática relativamente comum em Portugal que põe em risco a biodiversidade, os animais selvagens e também as pessoas”, afirma a equipa do LIFE Aegypius Return, numa nota de imprensa.

Milhafre-real. Foto: Francesco Veronesi

Em Portugal, embora as populações invernantes de milhafres-reais não estejam ameaçadas, as populações reprodutoras, que nidificam no país, são consideradas Criticamente em Perigo.

Nestes três anos e meio, os dados da GNR/SEPNA mostram que o uso ilegal de venenos também terá levado à morte de animais de outras espécies ameaçadas, incluindo dois abutres-pretos (espécie Em Perigo) mortos em abril de 2022, cinco águias-imperiais-ibéricas (Criticamente em Perigo) e um lobo-ibérico (Em Perigo). No caso dos abutres, sabe-se hoje que o uso de venenos é a principal causa de morte não natural dessas aves, a nível mundial, uma vez que são mais vulneráveis devido à alimentação que fazem.

Abutre-preto encontrado morto. Foto: ATN Faia Brava

Outras 13 raposas, seis cegonhas-brancas, seis grifos, um corvo e uma geneta, e mais de 700 bogas-dos-rios morreram também, num total de 84 casos em que houve indícios de suspeita de envenenamento de animais em Portugal continental. Houve também muitas vítimas domésticas, principalmente cães (40 mortes) e gatos (20).

Cegonha-branca. Foto: Matthias Barby/Wiki Commons

É no Interior, perto da fronteira, que o problema aparenta ser maior. Desde 2009, incluindo dados analisados no âmbito de um outro projeto anterior, e apesar das variações geográficas, “os distritos de Beja, Castelo Branco e Bragança aparentam manter uma certa consistência no maior número de casos”, afirma a equipa.

Nos últimos dois anos, deu-se ainda assim um “ligeiro decréscimo” no número de ocorrências registadas, mas “ainda é cedo para tirar conclusões a esse respeito”, acrescentam.

Dificuldades em laboratório, casos sem condenação

Por outro lado, a morte dos animais por envenenamento tarda em ser condenada pela justiça portuguesa. Desde logo, porque as análises em laboratório confirmaram a presença de venenos apenas em nove das 84 situações reportadas como suspeitas desde o início de 2021. “A limitação técnica dos laboratórios oficiais portugueses em detetar a presença de venenos nas amostras recolhidas em campo é uma das grandes restrições à aplicação integral do Programa Antídoto Portugal (PAP) e à instrução dos processos [judiciais]”, sublinha o projeto.

“O PAP é o programa oficial responsável por garantir que todos os casos suspeitos de envenenamento sobre espécies ameaçadas e prioritárias sejam formalmente investigados e que as provas sejam recolhidas e analisadas de acordo com a cadeia de custódia estabelecida”, descreve.  

De acordo com a equipa, já aconteceu contra-análises realizadas a amostras que tinham dado resultados negativos ou inconclusivos terem acusado a presença de veneno, quando foram enviadas para laboratórios com equipamentos mais modernos e sensíveis a menores dosagens. No entanto, como esses laboratórios não pertenciam à rede de custódia oficial, os resultados “não têm validade legal na instrução formal dos processos, que acabam arquivados com base em falsos negativos”. 

Amostra recolhida por suspeita de envenenamento, no âmbito do Programa Antídoto Portugal. Foto: ATN Faia Brava

“Outro constrangimento é que o protocolo formal do PAP nem sempre é totalmente aplicado em todas as fases do processo, seja devido à limitação de recursos humanos e técnicos, à incapacidade de resposta imediata de todas as partes envolvidas, ou a obstruções burocráticas demoradas, que não se compadecem com a necessidade de atuação urgente destes casos.”

Além do mais, sublinham, “os dados apresentados estão certamente subdimensionados” por várias razões, desde logo a falta de deteção, mas também a falta de uma base de dados integrada e atualizada continuamente, “que permita às autoridades um cruzamento da informação rápido e eficaz”.

Essa “subestimação do problema” contribui para que, num sistema judicial com falta de recursos, muitas vezes os crimes contra a vida selvagem acabem a “não ser priorizados” e a serem “arquivados, por falta de identificação de suspeitos e prova após uma investigação básica”. O resultado é que são “quase inexistentes” os casos de condenação neste âmbito, resultando numa impunidade “quase total” para quem pratica os crimes.

Mais duas equipas cinotécnicas para deteção de venenos

Além de prever uma colaboração estreita com o PAP e com a GNR/SEPNA, de forma a que mais casos de suspeita tenham condições para serem apreciados pela justiça, o projeto Aegypius Return prevê também o aumento de meios que os agentes de polícia terão para detetar venenos.

Equipa cinotécnica da GNR, durante uma patrulha. Foto: LIFE Aegypius Return

Assim, estão a concluir formação três novos cães para serem integrados no Grupo de Intervenção Cinotécnica, dois dos quais ficarão baseados no distrito da Guarda, anunciou também o projeto dedicado à conservação dos abutres-pretos. Neste momento, existem quatro equipas cinotécnicas formadas por um agente e um cão, que se dedicam à deteção de venenos. Localizadas em Lisboa, trabalham para todo o país, incluindo Açores e Madeira.


Para saber mais.

Porque se usam venenos?

Segundo o projeto LIFE Aegypius Return, “os venenos são substâncias usadas de forma ilegal para controlar predadores carnívoros como lobos, raposas, ginetas ou cães errantes, sobretudo em áreas rurais e no contexto das atividades cinegéticas ou agropecuárias. Também são utilizadas de forma recorrente e intencional em situações de conflitos locais (como desentendimentos entre vizinhos), ou de forma negligente no âmbito da agricultura ou silvicultura.

No entanto, além de atingirem os alvos diretos, os venenos acabam por afetar também outras espécies selvagens que ingerem os iscos, e animais domésticos – cães, gatos ou gado em regime extensivo. Indiretamente, impactam espécies que se alimentam dos cadáveres de animais envenenados, como as aves necrófagas. Adicionalmente, os venenos podem ser ingeridos de forma acidental por pessoas, nomeadamente por crianças, e contaminar solos e água, representando uma grave ameaça à saúde pública e à segurança e ao bem-estar também das comunidades humanas. 

Alguns dos venenos utilizados, como a estricnina, são substâncias altamente tóxicas e mortais, proibidas há muitos anos em Portugal, outros são fitofármacos ou pesticidas adquiridos com relativa facilidade. Apesar dos perigos sérios e da legislação existente, o uso de venenos permanece uma prática comum em muitos países, e Portugal não é exceção.” 


Agora é a sua vez.

Caso detete algum caso suspeito, contacte de imediato as autoridades, através da Linha SOS Ambiente e Território: 808 200 520, e forneça o máximo de informações possível. Nunca toque em cadáveres, iscos ou material potencialmente contaminado, nem permita que alguém interfira num possível local de crime até as autoridades chegarem.  

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.

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