Ricardo Tomé, biólogo e co-coordenador do Grupo de Trabalho de Aves Nocturnas e do 1º Censo Nacional de Corujas-das-torres, esteve na zona de Idanha-a-Nova no primeiro fim-de-semana de Março à procura destas aves. Conta como correu e como é participar num censo de aves nocturnas.
Binóculos, telemóvel com ficheiro descarregado com gravação de coruja-das-torres, caderno de campo, canetas, lanterna, água, um pacote de bolachas e uma peça de fruta, cachecol, gorro (a eterna indecisão: vale mais a pena sentir o frio na cabeça ou a incómoda impressão de que a audição sai afetada pelo raspar do tecido nas orelhas!?)… Esqueço-me de alguma coisa? É melhor levar a máquina fotográfica, nunca se sabe quando se terá, novamente, a fortuna de ter a dois metros uma curiosa família de javalis ou de observar a raposa que nos observa, intrigada, mesmo na beira da estrada.
Começa assim o início da participação no 1º Censo Nacional de Coruja-das-torres realizado em Portugal. Esta é apenas uma das vertentes do censo, aquela que envolve observadores com alguma experiência em todo o país, tendo em vista recolher informação sobre a distribuição e abundância da espécie. O objetivo maior é recolher informação suficiente para avaliar com rigor qual a tendência da população nacional – até agora, os resultados obtidos pelo programa de monitorização de longo termo das aves noturnas de Portugal (Programa NOCTUA) parecem indicar um decréscimo significativo daquela população, acompanhando o que também acontece em Espanha ou um pouco por toda a Europa.
Faltam apenas cinco minutos para se poder iniciar o primeiro ponto de escuta (que deve começar apenas meia hora depois do pôr do Sol: são relativamente preguiçosas, as corujas-das-torres, e só quando na noite já não se adivinham os últimos laivos de luz solar, se decidem finalmente a deixar os seus abrigos diurnos). Procuro uma berma mais larga para estacionar o carro. Difícil, na estreita estrada que entra na aldeia de Oledo, concelho de Idanha-a-Nova, entre muros de pedras bicudas que separam olivais e montados. Preparo-me para sair, pensando que é claramente cedo demais: no caminho ainda ouvia o reclamar excitado dos melros, o tímido piar dos omnipresentes tordos e até um cartaxo cantava ainda, despedindo-se até à madrugada seguinte. E vêem-se bem os contornos negros das árvores contra o azul violáceo do céu, ainda mais clareado por uma lua em crescendo. Definitivamente, é cedo demais.
Inicio o período de 10 minutos de escuta e, ainda não passaram 10 segundos, escuto o sopro áspero de uma coruja-das-torres, possivelmente a poucas centenas de metros! Afinal não é cedo demais, afinal a metodologia foi bem definida, alegro-me por dentro. E penso nos vários outros voluntários que, nesta mesma noite, estarão numa qualquer outra estrada estreita do país. E desejo que tenham a mesma sorte. A coruja apenas anunciou a sua presença por duas vezes, depois remete-se ao silêncio. Imagino-a a vocalizar à saída de uma grande cavidade no tronco de um sobreiro. Mas também poderia estar na esquina de um telhado enegrecido por fungos, numa casa em ruínas. E depois poderá ter saído para caçar num campo aberto. A imaginação encontra à noite terreno fértil para substituir o que a nossa impreparada vista não alcança.
Durante os restantes 9 minutos e cinquenta segundos os ouvidos são mantidos em estado de alerta, ainda mais depois do estímulo inicial. Mas apenas cães variados e o som, gravado, do sino da igreja próxima, se fazem ouvir. Depois do período de escuta passiva, chega a hora em que a gravação de coruja-das-torres é emitida durante três minutos, a partir das colunas do carro. Janelas abertas, portas abertas, volume alto, mas não no máximo – a ideia é aproximá-lo daquele que sairia das cordas vocais de uma coruja. O chamamento de coruja-das-torres, assim perto, é ainda mais assustador. O voo silencioso, adaptação comum a toda as aves de rapina noturnas para uma aproximação mais eficaz às presas, e a plumagem branca, muito terão também contribuído para que tantas histórias fantasmagóricas tenham surgido associadas a esta ave.
A emissão da gravação (entrecortada com pequenas pausas, para permitir a deteção de quaisquer respostas) chega ao fim mais rápido que o esperado, sem que a coruja, ou outro qualquer animal, se tenha feito ouvir. Mas nem sempre a reação é tão pronta e por isso a metodologia contempla um período final de mais 10 minutos. A esperança é redobrada, afinal ainda há pouco andava por ali uma coruja (e já parece que foi há tanto tempo). Os ouvidos, atentos, perscrutam a noite ainda com mais minúcia, em busca de algum pequeno som que se destaque, como quem busca uma imperfeição de tinta numa perfeita tela negra. A tarefa torna-se, agora, mais fácil, pois aparentemente os cães da aldeia dedicaram-se ao merecido repouso. O silêncio é quebrado pelo contrastante som do alarme do telemóvel, tão necessário quanto desenquadrado do cenário em que me encontro.
Terminados os 23 minutos de amostragem, é tempo de me deslocar para um novo ponto, que fica a dois quilómetros. Esta distância mínima foi definida com base no que se conhece sobre a dimensão média dos territórios de coruja-das-torres. Essa pode ter sido também a razão para não ter obtido mais nenhuma resposta, penso. Chego num instante ao novo ponto, ainda especulando que a coruja do local anterior estaria já a caçar na outra ponta do seu território e por isso não terá ouvido a gravação. É uma das razões possíveis. Mas pode ter sido apenas porque não lhe apeteceu – nas aves, como nos humanos, a personalidade e as circunstâncias também moldam o comportamento a cada instante… Seja como for, a noite vai correr bem, tendo em conta a primeira amostra!
Neste ponto, o ar está demasiado ocupado com o cantar arrastado de dezenas de sapos-corredores e com os ásperos coaxares das relas-meridionais. Com redobrada atenção, tento perceber quando alguma nota distinta se faz ouvir naquela anfíbia paisagem sonora. Às tantas, um silbido de um carro ao longe quase parece o sopro de uma coruja-das-torres. Começa a ser mais importante manter a concentração e não deixar a imaginação tomar conta. Uma chuva miudinha cai, inofensiva, e apenas fugazmente. Menos mal que não põe em causa o trabalho, que deve ser feito sob condições meteorológicas razoáveis. O habitat parece ótimo, com pastagens ainda húmidas divididas por olivais e belas sebes de carvalhos-negrais. Ouvem-se chamamentos aflautados de abibes, que já se treinam para o acasalamento em paragens mais setentrionais, para onde estarão de partida. Mas nada de corujas.
O terceiro ponto fica na berma de uma estrada nacional. Muitas vezes assim tem de ser, numa tentativa de optimizar o número de pontos de amostragem, tendo em conta a distância entre eles e o tempo disponível: neste caso, as amostragens deverão decorrer apenas até três horas após o ocaso, coincidindo com um dos períodos de maior atividade das aves noturnas, famintas que estão depois do longo fastio diurno. O trânsito não é, de todo, intenso. Ainda assim, alimenta algum nervosismo, pois cada viatura que passa levanta a dúvida de um encontro indesejado, por simpático que possa ser (é um dos problemas do trabalho com aves noturnas: a curiosidade, a preocupação, a vontade de ajudar, a desconfiança – tudo constitui um motivo para a interpelação, que raramente se resolve em pouco tempo. E o tempo para o trabalho é pouco, aqui). Ainda antes de colocar a gravação, um som vagamente dissilábico e grave, que já faz parte do registo mental há alguns segundos, ativa, subitamente, uma parte do cérebro: caramba, isto é um bufo-real! Deve estar bem longe (com boas condições de tempo e paisagem o canto do bufo-real pode ouvir-se a uns incríveis quatro quilómetros!), talvez a quase dois quilómetros. Numa zona acidentada com matos, perto de um rio, como constatarei mais tarde em casa, olhando para imagens satélite da zona.
Este registo será também aproveitado pelo GTAN, pois tanto tempo a escutar o campo não serve apenas para recolher informação sobre uma única espécie. E todos os dados sobre aves noturnas são importantes, que o conhecimento sobre a sua situação em Portugal é ainda escasso. Já no final do ponto, os latidos lancinantes de uma raposa lembram-me que ainda é Inverno. Isso e o frio que já aperta.
No último ponto, situado perto de uma pequena ribeira, marginada por prados alagados, os sapos-corredores parecem ter constituído o maior bastião da Península Ibérica. Ou assim parece, tal é a quantidade. Enquanto biólogo e apreciador da biodiversidade e da sua conservação aprecio este concerto. Mas não há como esconder que é perturbador da principal missão que me assiste. Mas possivelmente a culpa não é dos sapos e deveria ter escolhido melhor o ponto, quem sabe!? Mais uma espécie se faz ouvir ao longe, uma coruja-do-mato, com o canto mais típico de todas as noturnas. Se consigo ouvir uma destas assim longe, também seria possível destrinçar o chamamento de uma coruja-das-torres no meio do “sapal”. Mas não acontece e o alarme chama para o final.
As atividades do 1º Censo Nacional de Corujas-das-torres não se resumem à realização de pontos de escuta e deteção da espécie por observadores espalhados por todo país. Nos primeiros dois fins de semana de março qualquer interessado poderá contribuir, tentando descobrir alguma destas belas aves numa área agrícola, semi-urbana ou aberta perto de si. A população escolar tem sido envolvida em atividades dedicadas, com auxílio de um kit educativo desenvolvido para o efeito. E, mesmo que não tenha já oportunidade para participar em março, quaisquer informações sobre a presença desta espécie poderão ser cedidas através do preenchimento de um inquérito até final de junho. Participe, com a certeza de que o seu conhecimento será usado para a conservação desta espécie!
Agora é a sua vez.
Saiba aqui mais sobre o censo nacional da coruja-das-torres e como participar.
Descubra aqui o que as aves nocturnas andam a fazer nesta altura do ano.