Miguel Dantas da Gama leva-nos numa visita a Ordesa, pela fauna de montanha, a um alimentador de aves necrófagas e ao centro de visitantes da Fundación para la Conservación del Quebrantahuesos.
10h30, faz calor. Alvaro González, biólogo da Fundación para la Conservación del Quebrantahuesos (FCQ), já se encontra no local combinado, verificando a identidade dos participantes desta manhã na visita ao Comedero de Aves Necrófagas que esta organização não-governamental possui em Ainsa, povoação situada na província de Huesca (Comunidade Autónoma de Aragão) mesmo às portas do Parque Nacional de Ordesa e Monte Perdido. Ainda na praça ponto de encontro, dá-nos uma ideia do que vamos desfrutar.
O alimentador situa-se numa depressão da encosta sobranceira a esta vila, antiga capital do reino de Sobrarbe. Ao longo da subida, Alvaro faz uma breve paragem para melhor enquadrar a visita. Fala-nos dos propósitos da instituição para quem trabalha, do importante papel que as aves necrófagas desempenham na natureza, na extrema necessidade que temos em as proteger. Após vinte minutos de caminhada atingimos o comedero, um cercado onde em dois «hides» vários fotógrafos também aguardam a aproximação das aves. Com este cenário em pano de fundo, o biólogo presta mais informações. Coloca no chão várias maquetes com a silhueta das aves que, com maior ou menor regularidade, visitam o alimentador.
No céu pairam alguns grifos a grande altitude. Outros avistam-se pousados no topo das encostas circundantes. Está tudo calmo.
Mas tudo se altera quando o nosso guia avança para dentro do cercado no todo-o-terreno que transporta a carne e os ossos que vai lançar. De repente o céu enche-se de dezenas de grifos que em formação cerrada se aproximam rapidamente. Ainda não a colocou toda no terreno e já há cerca de uma centena de abutres pousados. E quando se apresta a deixar o recinto, o frenesim é imenso.
Os grifos fazem-se ouvir, engalfinham-se, rapidamente dão sumiço ao alimento trazido do matadouro. Logo a seguir começam a abandonar o alimentador. Desta vez apenas eles aproveitaram. Um quebra-ossos algo distante, quatro abutres do Egipto, dois milhafres-pretos, vários corvos e gralhas-pretas foram vistos, mas não pousaram.
«Ordesa 2021» vai a meio. Reservamos um dia da incursão que anualmente fazemos a este parque nacional pirenaico, para acompanhar o trabalho da FCQ, atenuando assim o esforço acumulado das caminhadas em que, durante uma semana, procuramos, próximo dos cumes, as preciosidades faunísticas que o aquecimento global vai tornando mais raras. São percursos longos, de desníveis extremos que nos cortam o fôlego. Não tanto pelo cansaço físico mas pela grandiosidade das paisagens que nos cortam a respiração. E pelos almejados avistamentos, encontros e reencontros, essencialmente com aves de alta-montanha. Este ano foram as trepadeiras-dos-muros, verdilhões-serranos, melros-de-peito-branco, ferreirinhas-alpinas as que mais nos entusiasmaram. Não faltaram os omnipresentes quebra-ossos, as gralhas-de-bico-vermelho e gralhas-de-bico-amarelo. Rebecos e marmotas fazem parte de todas as paisagens quando se sobe mais.
Descemos à vila. Após um almoço breve, dirigimo-nos para o casco antigo de Ainsa. Um belo aglomerado urbano medieval, dominado pelas muralhas do castelo.
É nele que se encontra o Ecomuseo e o Centro de Visitantes da FCQ num interessante espaço cedido pelo Estado espanhol. A exposição permanente domina as áreas de recepção, informação e de interpretação destinadas aos visitantes e apoiantes da instituição.
Enquanto subimos os vários pisos que acompanham uma recriação muito bem conseguida da natureza pirenaica, montada necessariamente em altura, vamos apreciando as maquetes dos animais e das plantas mais emblemáticas que sobrevivem nos vários andares da montanha, colocados diante de uma grande tela de uma das gigantescas paredes alcantiladas de Ordesa.
Sons iguais aos que escutamos quando deambulamos pela montanha sucedem-se à medida que subimos. Ao mesmo ritmo vão-se alterando os protagonistas desta animação. As espécies acima citadas que avistamos este ano, estão todas aqui representadas. Mas também o arminho, a perdiz-nival e o galo-montês. Apesar de eu ser suspeito quando me refiro à águia-real, fiquei particularmente impressionado com o realismo do seu modelo.
Seguimos depois para a sala de áudio visual, um pequeno auditório dentro das sóbrias paredes de pedra da velha fortaleza, no qual a fundação nos alerta para a ameaça que paira sobre estes ecossistemas de montanha devido às alterações climáticas, num vídeo com belas imagens, uma mensagem forte, muito bem elaborado.
Finalmente o albergue da fauna, um espaço onde neste momento permanecem dois quebra-ossos, dois bufos-reais e uma águia-cobreira vítimas da má conduta humana. Não nos vêem devido aos vidros que nos separam e por isso aparentam uma grande calma. Mas o olhar apático que todo o ser vivo preso exibe, principalmente o selvagem, transmite algo mais forte, mais profundo, inquietante. Foram baleados ou chocaram com linhas de transporte de energia elétrica. É a parte triste de toda esta visita, que constantemente nos interpela. A FCQ tenta com algum sucesso a reprodução em cativeiro destes animais que não podem ser devolvidos à natureza.
A meio da tarde, deixamos Ainsa e o sector Anisclo-Escuaín já percorrido. Os dias que nos restam deste final de julho serão fortemente vividos no sector Ordesa-Bujaruelo-Vignemale que nos espera.