A fauna do vale da Samarra, na zona de Sintra, é rica e Paulo, André e Ana querem conhecê-la de fio a pavio. Há já dois anos que exploram o lugar, de olho nas suas espécies selvagens. Hoje caminham em fila indiana, a largos metros de distância uns dos outros. Cabeça baixa, olhos no chão. As pegadas de texugo não são fáceis de encontrar.
Esta é uma expedição do projecto Moristagus (nome de uma divindade céltica associada à medicina, cujo símbolo era o texugo-europeu) para conhecer melhor as populações de texugos de Sintra. Não é a primeira e também não será a última. Nos últimos dois anos, André Martinho, 27 anos, Ana Galrão, 25, e Paulo Cruz, 26, têm percorrido o Vale da Samarra e já conseguiram criar um mapa da dispersão do texugo-europeu (Meles meles). Agora querem saber quantos são, quanto pesam e onde estão.
Passa pouco das duas da tarde. O carro fica estacionado na aldeia junto ao vale da Samarra e o grupo segue a pé. Atravessa a Ponte Romana da Catribana e percorre o troço de calçada romana que se vai fundir com os caminhos no meio da vegetação.
Hoje são apenas três os elementos na expedição. Fazem parte da equipa científica da Kosmonaus, associação sem fins lucrativos criada em Outubro deste ano mas que trabalha desde 2014. Tem 11 membros que se juntaram para aprofundar os conhecimentos em astronomia, biologia, arqueologia e geologia, comunicá-los e proteger a natureza.
O embrião da Kosmonaus nasceu da vontade de Paulo, André, ambos ex-estudantes de Arqueologia da FCSH/NOVA, e Ana, ex-estudante da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), de criar uma equipa que tivesse componente de investigação científica, aliada a uma forte vertente de comunicação.
Atualmente, Paulo trabalha em comunicação de Ciência no Observatório Astronómico da Universidade de Leiden, André está a terminar a tese em Evolução e Biologia Humana e Ana trabalha com o núcleo de Apoio ao Aluno na FLUL. Sempre que podem dedicam os fins-de-semana à associação e a comunicar o que descobrem aos outros. “Uma das grandes críticas que fazemos, e o que dá motivo ao Kosmonaus, é a falta de comunicação no meio da Ciência. A Ciência muitas vezes está fechada dentro de si própria”, comenta Paulo.
Os três colegas percorrem calmamente os trilhos do vale. À sua volta, os carrascos, tojos e zambujeiros denunciam a típica vegetação mediterrânica e apenas se ouvem algumas aves e o vento a agitar os arbustos. Não fossem estes caminhos, escassos sinais da actividade humana, e a paisagem estaria intocada pelo Homem.
Uma aranha chama a atenção da expedição. Teceu de um lado ao outro do trilho uma fina teia, que Paulo desfaz cuidadosamente para prosseguir o caminho. Mas não sem antes tirar algumas fotografias.
Mas nada de vestígios ou pegadas de texugos. Ana, André e Paulo andam, de cabeça baixa, em silêncio, procurando atentamente qualquer sinal. Aprenderam a ver pegadas na Internet. Com a prática, explica Paulo, é fácil distingui-las: as de texugo são totalmente diferentes das de cão, que por sua vez são idênticas às de raposa, mas só se aprende verdadeiramente com a experiência no terreno.
Com o objetivo de fazer a mínima intrusão possível não se realizam capturas de texugos no âmbito do Moristagus. A única maneira de conhecer este animal é através da sua interacção com o meio. Por enquanto, a observação de pegadas é o único método, mas o grupo espera em breve conseguir colocar armadilhas fotográficas, que vão filmar a actividade dos animais durante a noite. A ideia é obter mais informações sobre a relação do texugo com as populações e a agricultura das aldeias mais próximas.
Ali perto ouve-se uma ave. “É uma gralha?”, pergunta Paulo. André supõe que sim e por isso já está de telemóvel na mão, a gerar as coordenadas do local onde ouviram a ave e a apontar no bloco de notas. Paulo não consegue conter o fascínio por este grupo de animais, da família Corvidae. “As pegas, que são da mesma família das gralhas, têm a inteligência de uma criança de seis anos. Se as puserem em frente a um espelho, elas auto-reconhecem-se, coisa que nem os cães conseguem fazer. Acho que isto muda um pouco as coisas. Já não é só um bicho que anda ali, é algo com identidade… Ainda assim passa um caçador, dá-lhe um tiro e acabou.”
O destino da expedição, até agora sem sucesso, está prestes a mudar. Ana repara no conjunto de latrinas cheias junto ao caminho que percorrem. As latrinas funcionam como “casas de banho” públicas para os texugos. São pequenos buracos escavados na terra, entre arbustos, usados por um mesmo grupo de animais. “Voltaram a ser utilizadas, as fezes estão frescas”, comenta Paulo. “Isto parece confirmar aquilo que esperávamos, eles só cá vêm nesta altura do Outono e da Primavera.”
Ali perto, Ana não tarda a encontrar uma pegada de texugo no meio da terra já seca, quase imperceptível. “Está aqui uma, não está?”. Para o cidadão comum, nada distingue aquela saliência de todas as outras que a chuva e o vento fizeram na terra. Mas Paulo confirma: “Estão aqui duas, uma em cima da outra”.
A partir dali, são encontradas várias pegadas. André, para não complicar, regista apenas as coordenadas das primeiras e das últimas. “É raro encontrar assim tantas”, comenta Paulo. Embora a expedição esteja a tomar um melhor rumo, lamenta não encontrar também outras espécies pelo caminho. “Isto é a frustração da coisa, muitas vezes nada acontece. Depois há dias em que vemos tudo: bufos, cobras, raposas”, comenta enquanto recorda o dia triunfante em que tiraram uma raposa de um poço.
Chegada a outra zona do vale da Samarra, é hora de preparar a noite que se aproxima. Com três quilos de farinha no saco, Ana prepara-se para montar a primeira armadilha de vestígios de texugo. A farinha foi a solução mais económica que o grupo científico encontrou para identificar pegadas facilmente. Quando faziam as expedições no Inverno, o chão húmido denunciava o que por ali passasse. Com a chegada do Verão foi preciso encontrar uma alternativa. A farinha pareceu ideal, porque não é agressiva para o ambiente e é um material acessível.
Ana abre o primeiro pacote, espalha a farinha transversalmente ao trilho e alisa. À volta, as pedras e fósseis de bivalves contam a história de um passado longínquo, lugar outrora coberto por água. O mar, porém, não se afastou assim tanto e é mais um elemento caracterizador do vale. Quem parece não gostar são os texugos. Com a colocação da farinha junto aos trilhos, o grupo conseguiu concluir que eles mantêm uma distância de, pelo menos, um quilómetro da zona da praia, levantado a hipótese de isso se dever ao som do mar, que incomoda estes mamíferos.
Dali a algumas horas, as armadilhas estarão marcadas por texugos e outros animais que por ali passem: coelhos-bravos, roedores de diferentes espécies, algumas aves ou até uma raposa. Se as pegadas ficarem marcadas, poderão inferir sobre a existência de texugueiras perto dos locais onde montaram as armadilhas. As texugueiras são tocas e túneis escavados na terra onde vivem os texugos, em grupos familiares de dois a 12 membros.
Ana, André e Paulo estão bastante positivos em relação aos resultados que vão encontrar durante a noite. A noite começa a aproximar-se e o grupo volta a casa. Passa pouco da 01h00 quando regressa para observar os resultados do dia de trabalho. As pegadas que encontram permitem tirar novas conclusões. A população de texugo poderá estar a passar por um período de maior actividade, o que se deve, provavelmente, à maior disponibilidade de alimento e à preparação para o Inverno que se aproxima.
[divider type=”thick”]Saiba mais.
A protecção, preservação e respeito pela natureza são transversais a todos os projectos da organização. Além do projecto Moristagus, a associação trabalha em outras iniciativas, como o Dendron, em que fazem recolha e plantação de sementes de espécies autóctones da serra de Sintra. Acompanhe os trabalhos da Kosmonaus aqui.