Carine Azevedo dá-nos a conhecer esta planta medicinal de bonitas flores amarelas, que é uma excelente fonte de alimento para os pássaros, devido aos seus frutos.
A primavera, que chega no final de março, é a estação das cores e dos aromas. As temperaturas amenas e agradáveis favorecem os passeios ao ar livre para apreciarmos o que há de belo na natureza. Os espaços verdes estão em constante mutação e são inúmeras as fragrâncias e cores das flores que vão surgindo ao longo de toda a estação, como as do hipericão-do-Gerês (Hypericum androsaemum).
O hipericão-do-Gerês
O hipericão-do-Gerês – também conhecido como androsemo, erva-da-pedra, erva-mijadeira ou mijadeira – é uma importante espécie medicinal da família Hypericaceae, uma família cosmopolita (tem uma distribuição por quase todo o mundo), distribuindo-se pelas regiões temperadas a tropicais.
Em Portugal é representada apenas por espécies do género Hypericum. São 11 as espécies indígenas ou naturalizadas presentes em Portugal Continental, quatro no Arquipélago da Madeira e quatro nos Açores. É uma planta vivaz, de porte arbustivo e caules erectos e herbáceos que se tornam lenhosos com a idade, e que pode crescer até 1,20 metros de altura.
Os ramos, de crescimento abundante, são densamente revestidos de folhas de verde clara, simples, decussadas (dispostas em cruz), sésseis (sem pecíolo) e em geral amplexicaules (folha cuja base envolve parcialmente o caule, sem o cercar totalmente). O limbo tem forma ovada a lanceolada e margem inteira.
As flores são amarelas a douradas, com cerca de dois centímetros de diâmetro e surgem entre junho e setembro, agrupadas em inflorescências do tipo cimeira corimbosa. A corola é dialipétala, actinomorfa e composta por cinco pétalas. O cálice tem cinco sépalas livres, mais pequenas do que as pétalas. Os estames são amarelos e quase tão compridos como as pétalas.
O fruto é carnudo, tipo baga, quase esférico, indeiscente e monospérmico, avermelhado quando jovem e negro quando maduro. As sementes, com cerca de um milímetro, são aladas e pardo-escuras.
Origens e condições edafo-climáticas
O hipericão-do-Gerês é uma espécie de características atlânticas, nativo da região Mediterrânica, oeste e sul da Europa, norte do Irão e noroeste de África.
Em Portugal podemos encontrar esta espécie na faixa norte e centro litoral, nas regiões do Minho, Beiras e Estremadura. No entanto também pode ocorrer esporadicamente na Serra de Sintra, Montejunto, Gardunha, São Mamede e Monchique.
O hipericão-do-Gerês é das poucas plantas portuguesas com o nome de uma região, onde ocorre de forma espontânea, em comunidades herbáceas, no sob coberto de bosques, locais húmidos e sombrios, vales profundos e na margem de linhas de água.
Esta planta tem preferência por locais sombrios e frescos, embora se adapte a uma boa exposição solar. No entanto, locais com muita sombra diminui a produção de flores. Do ponto de vista edáfico, elege solos ácidos, preferencialmente argilosos, ricos em matéria orgânica, húmidos e bem drenados.
Tolera ventos fortes mas não exposição marítima. É resistente à seca quando já estabelecida e a temperaturas muito baixas, até -20ºC. É uma planta sensível, particularmente afetada por pragas e doenças, que podem provocar estragos consideráveis nas plantas. Os principais problemas destas plantas são os afídios e a ferrugem.
Medicinal e ornamental
A designação científica desta espécie é bastante particular. O nome no género Hypericum deriva do grego e da combinação de duas palavras, Hyper – que significa “acima” e de – eikon = “foto”, ou seja, referente ao que está além da imaginação, muito provavelmente devido à grande reputação como planta medicinal. O restritivo especifico androsaemum deriva das palavras gregas andro =” homem” + haima = “sangue” – “sangue de homem”, em referência à seiva da planta e ao suco avermelhado dos frutos quando esmagados (semelhante ao sangue).
O hipericão-do-Gerês é tradicionalmente cultivado pelas suas propriedades medicinais e farmacológicas, sendo uma planta rica em glândulas secretoras de resinas e óleos essenciais. É rico em hipericina (um dos principais constituintes ativos das espécies do género Hypericum e segundo alguns autores pode atuar como um antibiótico e antiviral), taninos e vitamina C.
A parte aérea florida da planta é a mais utilizada, sendo-lhe atribuída propriedades sedativas, diuréticas, digestivas, antidepressivas, hepatoprotetoras e cicatrizantes.
A infusão de folhas e flores secas de hipericão-do-Gerês funciona como um tranquilizante natural e é utilizada no tratamento de perturbações nervosas, insónias, depressões, doenças hepáticas e digestivas. Externamente ajuda a cicatrizar feridas, a tratar queimaduras e contusões e a evitar a inflamação destas.
Porque todas as plantas têm contraindicações e efeitos colaterais, aconselha-se a supervisão médica na toma desta infusão, uma vez que esta pode interagir com a ingestão de outro tipo de medicação, causando maior ou menor ação dos mesmos, podendo mesmo inibir a sua total eficácia, com consequências negativas para o organismo.
A importância medicinal desta planta tem levado a uma procura e colheita intensiva e desordenada no seu habitat natural o que, se não for rapidamente controlado, poderá colocar a planta em risco de conservação. As populações nativas, silvestres e espontâneas estão a desaparecer de ano para ano.
Além do grande interesse medicinal, a beleza e profusão das suas flores amarelas no final da primavera, tornam esta espécie muito ornamental, sendo muito utilizada em jardins e espaços verdes, em vasos e floreiras, em maciços, como espécie isolada ou em combinação com outras plantas, em taludes, zonas sombrias e húmidas e junto a cursos de água.
Esta planta tem um papel importante para a vida selvagem, sendo uma excelente fonte de alimento para os pássaros, que são atraídos pelos seus frutos e ajudam a dispersar as suas sementes para outros locais.
O hipericão-comum
O hipericão-do-Gerês não deve ser confundido com uma outra espécie do género Hypericum, a erva-de-São-João (Hypericum perforatum), uma das plantas mais divulgadas e estudadas nos últimos tempos, também conhecida como hipericão-comum ou milfurada.
A erva-de-São-João é uma planta herbácea perene, fácil de distinguir pela presença de grandes glândulas translúcidas nas folhas.
De grande plasticidade ecológica, desenvolvendo-se em diferentes condições. Surge espontaneamente em orlas de bosques, campos e prados, margens de caminhos, entre outros locais.
Devido ao consumo generalizado de antidepressivos sintéticos, cada vez mais, se têm procurado alternativas mais naturais. O uso tradicional da erva-de-São-João, como remédio caseiro para combater a depressão leve a moderada, assim como os sintomas associados de ansiedade e tensão muscular, levou a que fosse mais estudada, acabando por confirmar-se que a sua utilização tinha fundamento.
Esta planta possui diversos compostos bioativos como hiperforina, hipericina, flavonoides, taninos, entre outros.
Histórias e lenda do Hypericum
Na era pré-cristã, o Hypericum foi escolhido pelo Deus Sol nos sacrifícios em sua honra e era visto como a “erva do destino”. Estas crenças estavam associadas às flores e folhas, pois as pontuações translúcidas que se formam nas folhas (glândulas), ao deixar trespassar a luz do sol, formavam pequenos sóis e a cor e forma das flores pareciam simbolizar o Sol. Atribuíram-lhe a capacidade de proteção contra os espíritos malignos, demónios, bruxas e trovões.
Já na era Cristã, numa tentativa de enfraquecer as crenças e tradições pagãs, esta planta foi consagrada a São João Baptista, que terá nascido no dia do Solstício de verão. Segundo a lenda, esta planta terá sido abençoada por São João, tendo-lhe conferido poderes curativos, passando a ser um símbolo cristão. Pendurada em portas e janelas e servindo de marcadores de livros de orações, uma vez mais era vista como planta protetora.
Outras crenças sugerem que a seiva, quando em contacto com o ar ganha uma tonalidade avermelhada, simbolizando o sangue derramado por São João Baptista.
Lendas à parte, as espécies do género Hypericum são importantes e devemos continuar a preservar os seus habitats naturais para garantir a sustentabilidade das espécies.
Ao longo das próximas semanas, vamos republicar nesta série as 10 plantas mais lidas até hoje escritas na Wilder por Carine Azevedo. Este artigo sobre a camarinha foi publicado originalmente a 18 de Junho de 2021.
Dicionário informal do mundo vegetal:
Decussadas – as folhas surgem com disposição cruzada ao longo dos ramos.
Sésseis – as folhas não possuem pecíolo (haste de suporte), inserindo-se diretamente no caule.
Amplexicaules – folhas cuja base envolve parcialmente o caule, sem o cercar totalmente.
Ovada – folha com a forma de um ovo mais larga perto da base.
Lanceolada – folha com forma de lança.
Cimeira corimbosa – inflorescência com crescimento limitado, terminando numa flor, cujas hastes florais partem de pontos diversos, mas que alcançam altura semelhante.
Dialipétala – flor cuja corola é constituída por pétalas inteiramente livres, não ligadas entre si.
Actinomorfa – flor com simetria radial, ou seja a flor pode ser dividida em várias partes iguais.
Indeiscente – fruto que não se abre naturalmente quando maduro, não libertando as sementes.
Monospérmico – fruto que possui apenas uma semente.
Sementes aladas – são sementes que apresentam uma estrutura específica “asa”, para auxiliar a suadispersão pelo vento.
Todas as semanas, Carine Azevedo dá-lhe a conhecer uma nova planta para descobrir em Portugal. Encontre aqui os outros artigos desta autora.
Carine Azevedo é Mestre em Biodiversidade e Biotecnologia Vegetal, com Licenciatura em Engenharia dos Recursos Florestais. Faz consultoria na gestão de património vegetal ao nível da reabilitação, conservação e segurança de espécies vegetais e de avaliação fitossanitária e de risco. Dedica-se também à comunicação de ciência para partilhar os pormenores fantásticos da vida das plantas.
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