Sempre que chegam a chuva e as formigas aladas, toda a passarada anda num rodopio, a aproveitar tamanha iguaria. Os papa-moscas não se fazem rogados, conta Paulo Catry.
16 Setembro 2022
Choveu finalmente, ainda que sem chegar a tudo ou a todos, longe disso. Mas por aqui choveu bem.
Às primeiras gotas veio o cheiro da terra renascida da canícula. Depois vieram outras gotas, e outras mais ainda. Houve chão permeável que recebeu a água de poros abertos. Onde a chuva persistiu, mesmo a terra mais teimosa e dura cedeu e amoleceu. Ficou pronta para ser trabalhada. Era disto que as formigas do campo estavam à espera.
No primeiro dia de sol, à medida que o ar húmido aquece, subitamente heis que começa a chover ao contrário. Gotas brilhantes sobem em colunas e aos poucos enchem tudo, são as asas das formigas aladas que cintilam na luz da manhã. Machos e futuras rainhas vão acasalar para depois as fêmeas fecundadas perderem as asas e furarem a terra fresca e macia onde vão estabelecer novas colónias. São formigas grandes, como a formiga-do-pão Messor barbarus, dessas que todo o Verão andaram por carreiros largos e limpos, bordejados de palha seca, a acartar sementes de cereais e de ervas bravias. Vêm anafadas, das reservas que trazem para esta nova etapa. São petiscos gordos, luminosos e fáceis de capturar, uma tentação!
Nestes dias, reparem que por vezes se veem grupos de gaivotas altas no ar. Têm um voo peculiar, aceleram um pouco num movimento ascendente e logo planam, repetem. Não formam bandos, voam desordenadas, quase chocam no ar. Andam de volta das nuvens de formigas. O mesmo se passa com os estorninhos, que circulam por estas alturas com modos de andorinhas. Toda a passarada aproveita. Já me aconteceu ver até uma trepadeira-azul armada em papa-moscas (quem é que acredita?), caçando o seu quinhão em pleno voo.
“João, já tenho formiga-d’asa; anda daí armar aos taralhões!”. Era por esta época outonal, em tempos largamente idos, que a miudagem (e não só) mais armava aos pássaros. Por todo o lado, arrisco dizer, em cada aldeia do país. Em Setembro os taralhões eram o alvo de eleição.
Sei que há quem queira, ao ler estas linhas, alertar com urgência para o facto de que a prática não morreu. E de facto, foi até notícia no ano passado a decisão incompreensível, por maioria na Assembleia da República, de não proibir as “ratoeiras” ou “costelas” com que se apanham estes pássaros miraculosos (a caça é interdita, mas não a venda do utensílio da letal captura). Contudo, o que hoje se apanha assim é nada, comparado com outros tempos. Mais não fosse porque as aldeias esvaziaram-se de gaiatos e nas cidades há tanto mais com que encher os dias.
São duas espécies, os taralhões (nalgumas regiões também conhecidos por papa-moscas): o cinzento Muscicapa striata e o comum ou galego Ficedula hypoleuca. Este último é mais numeroso e mais conspícuo pelos seus chamamentos e comportamentos territoriais que envolvem um bater de asas sinalizador quando está poisado. O bate-a-asa, como também é conhecido, apanha-se melhor nas armadilhas, pois ao contrário do taralhão-cinzento (que se especializa a caçar insetos em voo) também captura numerosas presas no solo.
Uma grande maioria dos taralhões-comuns da Europa faz escala na Península Ibérica durante a migração de outono. E nota-se, são tantos a anunciar a passagem que não podem passar despercebidos. Concentram-se nas regiões mais ocidentais, sobretudo em Portugal e na Galiza. Pinhais, montados, pomares, até em bocados de verde no coração de grandes cidades, estão em todo o lado!
Aqui param por uns dias e defendem a exclusividade de umas poucas centenas de metros quadrados, onde se alimentam vorazmente (a leitora adivinhou: empanturram-se de formigas-de-asa, quando as há). Acumulam gordura para a viagem que se avizinha. Depois lançam-se num voo destemido sobre o mar, voando noite e dia ao longo da costa noroeste africana (evitando assim os calores do Sara). Com frequência só voltam a parar já passado o deserto, no sul da Mauritânia ou no Senegal*, depois de cerca de 36 a 48 horas sempre a bater as asas e com a ajuda de ventos favoráveis**.
Na migração primaveril todos estes taralhões-comuns passam por uma rota mais para nascente e é raríssimo vê-los por cá. Já os taralhões-cinzentos aparecem e nidificam, mas muito escassamente, se comparando com as populações de outono. São portanto aves quase invisíveis na Primavera, tempo em que sobressaem antes outros protagonistas emplumados, como as proverbiais andorinhas.
Na recolha de Contos Tradicionais do Povo Português efetuada por Teófilo Braga (1883), temos o sumário penetrante do que acima sem jeito se procurou descrever. Conversa passada na primavera…
Dizem os taralhões:
Donde vindes andorinhas
Que fostes poucas e muitas vindes?
Replicam elas:
Donde vindes, taralhões loucos
Que fostes muitos, e vindes poucos?
Muitos mesmo, estes que agora por aqui param e logo se vão. Se em português os meses tivessem nome de pássaro, setembro chamava-se taralhões.
* Bell et al 2022. Ibis 164
** Ouwehand & Both 2016. Biology Letters 12
Saiba mais.
Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.
A secção “Seja um Naturalista” é patrocinada pelo Festival Birdwatching Sagres. Saiba mais aqui sobre o que pode ver e fazer neste evento dedicado às aves.