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Elizabete Marchante. Foto: Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra

Investigadores pela Natureza: Elizabete Marchante combate invasoras com ciência e cidadania

03.06.2025

Na série de entrevistas Investigadores pela Natureza, a Wilder fala com cientistas que se dedicam a tentar resolver alguns dos maiores desafios da biodiversidade e sustentabilidade em Portugal. Hoje, conheça Elizabete Marchante, investigadora na área das invasões biológicas e uma das fundadoras da plataforma Invasoras.pt.

WILDER: Quem é a Elizabete Marchante como cientista?

Elizabete Marchante: Comecei a trabalhar com espécies de plantas invasoras durante o meu doutoramento. Tenho uma irmã gémea que já trabalhava nessa área, mais focada em perceber como é que estas espécies se estabeleciam e afetavam a vegetação. Na altura, eu estava a trabalhar com micorrizas. Achámos que seria interessante podermos colaborar e complementar o nosso trabalho, estudando a parte acima e a parte de baixo do solo. O primeiro projeto em que estive envolvida com espécies invasoras, e que acabou por ser o foco do meu doutoramento, foi precisamente esse. Começámos a tentar trabalhar de forma complementar. Eu procurava perceber como é que as plantas invasoras, neste caso a acácia-de-espigas, estavam a alterar o solo e os seus organismos, e ela analisava os efeitos acima do solo. A nossa ideia era juntar essas duas perspetivas, perceber como se relacionavam e como é que, juntas, estavam a transformar os ecossistemas por causa da invasão da acácia.

Isto foi no início dos anos 2000 e havia ainda muito por fazer para conseguirmos ajudar a resolver o problema gigantesco das invasões biológicas. Acho que foi aí que começou a minha paixão pela gestão das espécies invasoras. Sempre senti que o meu trabalho não podia ser só ciência fundamental, fechada dentro da universidade e da academia, apesar de eu gostar muito dessa vertente também. Sempre senti que queria contribuir, nem que fosse um bocadinho, para resolver problemas reais da nossa sociedade e do nosso mundo. Comecei por tentar perceber os impactes das plantas invasoras e o que é que elas estavam a alterar. Mas, a partir daí, surgiu também a questão: como é que o ecossistema pode recuperar e o que é que nós podemos fazer para ajudar? Depois disso, foram surgindo outras perguntas e outras linhas de investigação em que fomos trabalhando, sempre em conjunto, apesar de cada uma ter seguido áreas um pouco diferentes.

Conversa aberta sobre espécies nativas, invasoras e urbanas, no Instituto Superior de Engenharia de Coimbra. Foto: EcoCampus ISEC

W: O que são espécies invasoras e quais os seus principais impactos?

Elizabete Marchante: As espécies invasoras são espécies exóticas, ou seja, espécies que vêm de outros territórios. Mas isso, por si só, não é suficiente para que sejam consideradas invasoras. Há muitas espécies exóticas que não são invasoras. Para o serem, têm de conseguir estabelecer-se, começar a multiplicar-se e a reproduzir-se sozinhas, sem depender da ajuda do ser humano. Mesmo que tenham tido essa ajuda no início, acabam por se afastar dos locais onde foram introduzidas e dispersar-se por conta própria, podendo atingir densidades muito elevadas. Esta expansão acentuada acaba por ter impactes negativos, não só na biodiversidade, que é de facto uma das grandes preocupações, mas também na vida das pessoas, nas nossas atividades e nos serviços dos ecossistemas.

Em 2023 foi publicado um importante relatório pela Plataforma Intergovernamental que trabalha com biodiversidade e serviços dos ecossistemas (a IPBES – Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services) que tentou reunir toda a informação disponível sobre as espécies invasoras a nível global, e os resultados, em termos gerais, são alarmantes. As espécies invasoras estão relacionadas com 60% das extinções em todo o mundo, o que é realmente preocupante. Além disso, os impactes económicos são muito elevados, atingindo cerca de 400 mil milhões de dólares por ano (cerca de 350 mil milhões de euros). Este valor é ainda mais preocupante porque se acredita que está subestimado, já que muitos dos impactes não estão quantificados economicamente.

Para além dos impactes já bem estudados que estas espécies têm na biodiversidade, este relatório destaca também o problema que as espécies invasoras representam na vida das pessoas, na qualidade de vida, tanto no âmbito socioeconómico como na própria saúde. Há muitas espécies associadas a problemas de alergias e a vetores de doenças. Elas afetam a saúde física das pessoas e têm um impacte enorme no nosso mundo. No entanto, acredito que este tema ainda é pouco conhecido pelo público em geral. É um assunto que as pessoas interessadas em ambiente e temas relacionados conhecem, mas o cidadão comum muitas vezes não faz ideia do que estamos a falar. Por isso, também tenho investido muito em comunicação de ciência e divulgação, para levar este tema até ao cidadão comum e até aqueles que gerem essas espécies e que lidam com elas. Apesar disso, infelizmente, ainda há muito caminho a percorrer.

A acácia-de-espigas (Acacia longifolia) é uma espécie invasora de origem australiana, incluída na Lista Nacional de Espécies Invasoras. Foto: Elizabete Marchante

W: Quais os principais projetos que desenvolveu nesta área até hoje?

Elizabete Marchante: Tenho trabalhado muito com controlo biológico, mas também noutras áreas. O controlo biológico clássico, que é aquele que estamos a utilizar, consiste na utilização de inimigos naturais, ou seja, organismos que existem nos territórios de origem das espécies que queremos controlar e que são extremamente específicos para essas espécies. Normalmente estes agentes não vão eliminar a espécie-alvo, mas vão reduzir a sua população, a sua capacidade para se reproduzir ou crescer. O agente de controlo biológico da acácia-de-espigas é uma pequena vespa australiana que forma galhas nesta espécie. Quando põe os ovos nas gemas florais, estimula a produção de galhas em vez das flores, reduzindo a produção de sementes. Já quando deposita os ovos nas gemas vegetativas, o crescimento da planta é afetado, diminuindo assim o seu vigor. 

Estive envolvida ainda na fase de pré-libertação, com os estudos e análises de risco necessários para obter autorização para a introdução do agente. Atualmente estamos na fase de pós-libertação, o agente já foi libertado em 2015 e, desde então, temos feito monitorização a vários níveis. Avaliamos os efeitos na planta-alvo, a acácia-de-espigas, de forma a observar se o agente diminui a produção de sementes e o crescimento da planta. Além disso, analisamos os impactes no banco de sementes e nas outras espécies do ecossistema. Estudamos também os efeitos nas redes ecológicas de galhadores (insetos e outros organismos que promovem a formação de galhas – como os bugalhos – nas plantas), para tentar perceber os efeitos indiretos deste agente. Ou seja, analisamos como este agente que foi introduzido interage com as outras espécies de galhas que ocorrem naturalmente nos nossos ecossistemas. As galhas são um mundo fascinante, composto pelo agente que as produz e por outros parasitoides, híper-parasitoides e inquilinos, funcionando quase como um mini-ecossistema. O que estamos a investigar é de que forma estas redes podem ser afetadas, ou não, pela presença deste galhador novo, que é muito dominante e que aparece em grande quantidade na acácia-de-espigas.  

Além disso, temos envolvido os cidadãos em projetos de ciência cidadã para nos ajudarem a identificar os locais onde o agente já está presente. Esta colaboração facilita a monitorização e o mapeamento, além de contribuir para sensibilizar a população, uma vez que este tema ainda é bastante recente em Portugal e na Europa.

Estamos a iniciar o controlo biológico de outras acácias e esperamos começar em breve o controlo biológico do jacinto-de-água. Mas trabalhamos também com outras espécies, a nível da ecologia, impactes e restauro dos ecossistemas. O objetivo é encontrar soluções que sejam, por um lado, mais amigas do ambiente e, por outro, mais sustentáveis não só do ponto de vista ambiental, mas também económico. Muitas das metodologias de controlo atualmente usadas são muito dispendiosas e, por vezes, pouco eficazes, o que dificulta o controlo eficiente dessas espécies.

W: Além da investigação, co-fundou a Invasoras.pt, uma plataforma de ciência cidadã. Qual a importância desta iniciativa?

Elizabete Marchante: A plataforma invasoras.pt começou em 2013 mas, na realidade, é uma evolução de um site muito simples que tínhamos anteriormente. Esse site surgiu a partir do primeiro campo de trabalho que fizemos em 2003, quando percebemos que a informação que tínhamos não estava acessível ao público. Então, começámos por criar fichas bastante rudimentares com informação sobre as espécies e as metodologias de controlo. Posteriormente, tentámos disponibilizar essas fichas online para que as pessoas pudessem facilmente aceder a essa informação, e essa foi a origem do invasoras.pt. 

Em 2013, com o financiamento da Ciência Viva – Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica, transformámos essa informação numa plataforma de ciência cidadã. Criámos um mapa e aplicações para que as pessoas pudessem registar as espécies de plantas invasoras e contribuir de forma ativa. Também alargámos significativamente o leque de iniciativas, não só para promover a plataforma, mas também para chegar a públicos variados e desenvolver ferramentas que fossem realmente úteis. Além do website, que disponibiliza muita informação, e das redes sociais, que ajudam a divulgar e aprofundar esses conteúdos, temos também materiais publicados. Destaca-se um guia, já com várias edições, cuja terceira edição deverá ser lançada dentro de alguns meses, e um manual técnico de boas práticas para a gestão de invasoras, publicado no ano passado – Manual de Boas Práticas para a gestão e controlo de plantas invasoras lenhosas em Portugal Continental.

Apesar de o invasoras.pt ter uma forte componente de comunicação, também realizamos investigação nessa área. Procuramos perceber quem são as pessoas a quem estamos a chegar, como é que este tema as afeta e de que forma influencia o seu conhecimento e perceção sobre as invasões biológicas. Esta componente mais social é fundamental porque, para que as pessoas aceitem e colaborem nas medidas de controlo, é essencial que compreendam os motivos por detrás dessas ações.

No caso das plantas pode ser mais fácil, mas quando se trata de controlar animais, sobretudo espécies que as pessoas consideram “fofas” ou carismáticas, a resistência é maior. Mesmo nas plantas, muitas vezes há reações negativas, especialmente quando os controlos são feitos a grande escala. Por isso, se queremos ter o apoio da população e garantir que as pessoas compreendem o que está a ser feito e porquê, temos de as envolver. E isso só é possível com uma comunicação eficaz e acessível. Não se trata de dizer se algo está certo ou errado, mas sim de informar, para que as pessoas possam formar a sua própria opinião.

Elizabete Marchante no ciclo de conferências realizado no âmbito da exposição “A Floresta – muito mais do que madeira”. Foto: Município de Setúbal

W: Que conselhos daria aos jovens investigadores que estão a iniciar a sua carreira?

Elizabete Marchante: Em primeiro lugar, é fundamental escolherem algo que verdadeiramente os apaixone. É isso que me move, poder estudar um tema que gosto profundamente. E, para mim, é essencial sentir que aquilo que faço tem um impacto prático na natureza e na vida das pessoas. Reconheço que a investigação fundamental é absolutamente necessária, mas pessoalmente preciso de sentir que estou a ir um pouco além, que o meu trabalho pode contribuir diretamente para resolver problemas e desafios da sociedade.

Fazer o que gostamos é, sem dúvida, o primeiro passo. Mas depois é preciso muita perseverança e persistência. A investigação não é um caminho fácil, nem em Portugal nem no resto do mundo. É um percurso cheio de incertezas, de grande precariedade, e só conseguimos mantê-lo se tivermos algo que verdadeiramente nos motive.

No meu caso, uma coisa que me move é pensar para além de mim própria e da investigação que faço; penso nas pessoas, na natureza, em algo maior que dá sentido ao que faço. E é isso que me permite continuar, apesar das dificuldades, apesar da precariedade da ciência em Portugal.

Ao longo dos anos, enfrentei muitos contratos incertos e a curto prazo, mas consegui manter a minha linha de investigação e até construir uma pequena equipa. Isso só é possível com muita resiliência e com a convicção de que estamos a contribuir com algo útil, com algo que faz sentido para a sociedade.


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