A vontade de fazer regressar o carácter selvagem a territórios mais ou menos alterados pelo homem, a que me referi na última crónica, tem reunido muitos cidadãos e instituições num movimento denominado Rewilding Europe.
A ideia é garantir a integridade de espaços com uma dimensão que permita recriar ecossistemas naturais onde a intervenção humana se vá reduzindo até, idealmente, se anular. Algumas centenas de hectares poderão bastar e nem sequer o estado de conservação do espaço de que se parte é um factor limitativo. O que importa assegurar é que as causas que levaram à sua degradação (ou outras que possam surgir) sejam definitivamente anuladas. Igualmente importante é o perfil da área envolvente do território selvagem propriamente dito, que deverá funcionar como uma zona tampão e onde algumas infraestruturas de apoio poderão ser previstas nomeadamente para acompanhamento e observação do espaço a preservar.
Em Portugal não temos espaços virgens. Qualquer que seja o local eleito, impõe-se sempre uma ajuda humana para livrá-lo de qualquer factor de pressão e assim criar condições para que a natureza possa, mais cedo do que tarde, restabelecer os equilíbrios perdidos entre seres selvagens – alguns extintos, outros com populações afectadas – e o meio de que dependem.
Se pensarmos numa zona, à partida já detentora de um estatuto especial, dentro de uma área protegida, a intervenção deve ser minimalista, cirúrgica e excepcionalmente bem fundamentada. Actualmente sabe-se muito sobre as espécies selvagens que povoaram ou devem povoar qualquer parcela do nosso território. A disseminação de sementes recolhidas nos espaços envolventes é, nestes casos, obrigatória.
Se, no outro extremo, partimos de um eucaliptal ou de uma área destruída por fogos consecutivos – em muitos casos também submetidas à proliferação de plantas exóticas, algumas com carácter infestante – a intervenção deverá ser mais profunda e prolongada. O investimento em meios humanos e materiais dirige-se precisamente a estas acções de recuperação de habitats (limpezas, construção de cercados protectores) e de reintrodução de espécies vegetais e animais. Se o projecto for bem sucedido, elas tendem a anular-se com o tempo e os encargos vão-se concentrando nas medidas de vigilância e de prevenção para contrariar a intromissão humana.
Portugal tem beneficiado de projectos que se poderão encaixar na filosofia do movimento rewilding. A população de cabra-montês (Capra pyrenaica) restabelecida no Parque Nacional da Peneda-Gerês, depois de cem anos de ausência (tinha sido extinta no início do séc. XX) e o bem conseguido processo de criação em cativeiro do lince-ibérico (Lynx pardinus), com a progressiva e consistente libertação de indivíduos que já começam a reproduzir-se em liberdade, contam-se entre os mais emblemáticos.
Mas o que se discute aqui é algo mais profundo. Espaços bravios sustentam populações estáveis de espécies selvagens. O que se passou no Parque Nacional de Yellowstone (Estados Unidos) com a reintrodução do lobo-cinzento, é exemplar. O território selvagem estava lá. A prova de que lhe faltava o lobo é que rapidamente se garantiu uma população viável da espécie, com o valor acrescido da sua presença ter restaurado equilíbrios naturais que a ausência deste predador tinha sonegado. A predação de veados beneficiou os ursos ao disponibilizar-lhes carcaças e o controlo das populações de cervídeos fez diminuir a pressão sobre a vegetação ripícola, beneficiando os castores e um sem número de outras espécies que ganharam com o reforço da presença destes empreendedores roedores.
Voltando aos projectos nacionais e sem perder de vista que uma espécie não se torna verdadeiramente livre quando se lhe abre a porta do cativeiro, a população de cabra no Gerês não tem parado de crescer. Este é um indicador que deve merecer atenção, quando também faltam estudos de avaliação do impacto sobre o meio, muito afectado pelos incêndios. Quanto aos linces, esperemos que o esforço despendido e os importantes êxitos alcançados, promovam acções no terreno de igual monta, concretamente de recuperação de habitat, que levam a que um dia, o centro de reprodução de Silves e os demais em Espanha, não sejam mais necessários. Poderemos então afirmar que o lince-ibérico está presente em Portugal.
Estado, proprietários de grandes espaços, gestores de baldios, universidades e centros de investigação associados, organizações-não-governamentais (de quem se esperam também acções que mobilizem a sociedade), grandes empresários, sensíveis à responsabilidade social ambiental, deverão ser os promotores deste movimento de rewilding no nosso país.
Exceptuando o Estado, que o deve assumir como obrigação, atendendo ao princípio que está na origem desta importante causa do interesse comum, todo o esforço requerido depende essencialmente do voluntariado, de quem não espera retorno económico, pelo menos imediato. De quem consiga admitir uma visão do mundo contrária ao mainstream. De quem esteja disponível para agir pensando “apenas” na natureza. Para tal é oportuno reafirmar a ideia da última crónica. Importa valorizar a vida selvagem. A sociedade tem que interiorizar a importância do que para muitos de nós não passa de um bom momento de distração quando, por exemplo, saímos de uma sala de cinema em que passou um filme como “Into the Wild”. Ou viramos a última página de um bom livro que nos permitiu, durante escassas horas, mergulhar na wilderness.
Mas, a propósito dos livros, a denominada “nature writing” tem sido um bom veículo para essa mesma valorização da natureza selvagem que queremos promover. Será por isso o tema da próxima crónica, bem no princípio das férias de Verão, propícias a grandes leituras.